sexta-feira, 20 de junho de 2008

"Seres Invisíveis"?! - Quantos haverá perto de mim?

Porque acho que todos somos dignos de um Bom Dia!, independentemente do valor da conta bancária ou das oportunidades que a vida nos facilita, acho que vale a pena ler e reflectir sobre este texto:
"Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da "invisibilidade pública" "Fingi ser gari por anos e vivi como um ser invisível"Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro. Quem não està bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social.O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são "seres invisíveis, sem nome".Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da "invisibilidade pública", ou seja, uma percepção humana totalmenteprejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-sesomente a função e não a pessoa.Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de suavida: "Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência", explica o pesquisador.O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não como um ser humano. "Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão", diz.Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e das humilhações diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os enxerga.. E encontram no silencio a defesa contra quem os ignora.Como é que você teve essa ideia?- Meu orientador desde a graduação, o professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma das provas de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma forma de atividade profissional que não exigisse qualificação técnica nem academica. Então, basicamente, profissões das classes pobres.Com que objetivo?A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos na cena publica. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qual eles estão sujeitos dentro da sociedade. Outro ni­vel de investigação, que vai ser priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar as barreiras e as aberturas que se operam no encontro do psicólogo social com os garis. Que barreiras são essas, que aberturas são essas, e como se dà a aproximação?Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de um estudante fazendo pesquisa?Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal. Chegando là eu tinha a expectativa de me apresentar como novo funcionário, recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas, os garis sacaram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisa típica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o diferencial, porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série de fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os garis conseguem definir essa diferenças com algumas frases que são simplesmente formidáveis.De um exemplo?Nos estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear com um dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de couro na mao. O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, o que é comum nessas situações. O gari, sem se referir claramente ao homem que acabara de passar, virou-se pra mim e começou a falar: "é Fernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho. Já o pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E quando a gente està esperando o trem logo percebe também: o peão fica todo encolhidinho olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar sò por cima de toda a peaozada, segurando a pastinha na mao."Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era diferente?Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro dia de trabalho jà deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era um gari. Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis são carregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. é como se eles fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar na caçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de insistir muito para poder viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de trabalho, continuaram me tratando diferente.As vassouras eram todas muito velhas. A única vassoura nova jà estava reservada para mim. Não me deixaram usar a pà e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse sò com a vassoura e, mesmo assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem socioeconomica deles.Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.Eles testaram você?No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria toma-lo, e claro, não livre de sensaçoes ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse: 'E aì, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?' E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar."Essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa"O que voce sentiu na pele, trabalhando como gari?Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejao central. Aì eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro academico, passei em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar não senti o gosto da comida voltei para o trabalho atordoado.E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se aproximando - professor meu - até parava de varrer, porque ele ia passar por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como se tivesse passando por um poste, uma arvore, um orelhão.E quando voce volta para casa, para seu mundo real?Eu choro. é muito triste, porque, a partir do instante em que voce esta inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, frequento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossem uma coisa.*******************Todo o mundo se sente invisi­vel em algum momento da vida - numa festa de gente de outra tribo, no emprego novo em que não se conhece ninguém. Mas essas são outras invisibilidades, circunstanciais, e portanto passageiras, reversíveis. O estudo de Braga é sobre uma invisibilidade tao automatizada na sociedade que muitas vezes nem mesmo o ser invisível se dà conta de sua degradante situação. 'Se ele percebe, carece de armas para o combate. Depois de ser ignorado a vida inteira ou, no máximo, maltratado, ninguém anda de cabeça erguida.'De fato, na maioria das vezes, o gari que limpa nossa cidade sò é notado quando falta ao serviço. O ascensorista é tratado como uma maquina que funciona por comando de voz, sem direito a 'por favor' nem 'obrigado'. A empregada doméstica põe o avental, alimenta a fami­lia e deixa a casa organizada anos a fio, mas os patrões mal sabem seu sobrenome, se tem filhos, se està com algum problema. Os únicos cidadãos que vestem uniforme para servir aos outros e ganham visibilidade e reconhecimento são os que estão em situação de poder sobre o interlocutor - médicos, enfermeiros, policiais. 'Algumas profissões estão num nível de rebaixamento absoluto', reforça Braga. 'As pessoas estão habituadas a passar pelos garis como quempassa por objetos', assinala.
Concluída em 2002, a tese agora vira livro lançado pela editora Globo.
TITULO: Homens Invisi­veis: Relatos de uma Humilhação Social
AUTOR Fernando Braga
EDITORA Globo"

Nenhum comentário: